Nos últimos anos, tem crescido nas escolas, nas famílias e até em alguns sistemas de ensino, uma cobrança silenciosa (ou escancarada) para que crianças saiam da Educação Infantil já alfabetizadas. Muitos pais dizem: “Quero que meu filho já esteja lendo antes do 1º ano.” E algumas escolas, pressionadas por um mercado cada vez mais competitivo, vão cedendo: inserem apostilas, atividades impressas com letras e sílabas, estímulos precoces à leitura e escrita formal.
Mas isso é mesmo necessário? É saudável? É pedagogicamente fundamentado?
O que diz a neurociência
A resposta curta: não. A neurociência mostra que forçar a alfabetização antes do tempo ideal pode, inclusive, ser prejudicial ao desenvolvimento da criança.
Segundo pesquisadores como Stanislas Dehaene (2012), as áreas do cérebro relacionadas à leitura e à escrita se estruturam a partir dos 5 anos, mas a maturação neurológica plena dessas funções cognitivas ocorre entre os 6 e 7 anos de idade. Isso inclui:
- Consciência fonológica (a capacidade de identificar sons da fala);
- Atenção e memória de trabalho;
- Coordenação visomotora;
- Capacidade de abstração.
Quando exigimos leitura e escrita formal antes disso, corremos o risco de gerar frustrações, sentimentos de incompetência, insegurança e, ironicamente, resistência à leitura e à escrita nos anos seguintes.
O que diz a BNCC
A Base Nacional Comum Curricular é explícita: a alfabetização deve ser consolidada até o final do 2º ano do Ensino Fundamental. Isso significa que a Educação Infantil não tem como função a alfabetização formal.
Seus objetivos são outros: favorecer o desenvolvimento da linguagem oral, da expressão corporal, do pensamento simbólico, da escuta, da imaginação, da curiosidade, da convivência e do brincar. Tudo isso é base do processo de letramento, mas não deve ser confundido com alfabetização.
Uma crítica à lógica da antecipação
A cobrança por resultados rápidos, medidos por indicadores de desempenho, tem atravessado a escola e afetado profundamente a Educação Infantil. É a lógica da performance, da produtividade, do “quanto antes melhor”. Mas infância não é corrida.
Vygotsky nos lembra que o aprendizado real se dá na zona de desenvolvimento proximal, ou seja, em um espaço de mediação entre o que a criança já sabe e o que pode vir a saber com ajuda. Isso exige escuta, tempo, atenção e intencionalidade pedagógica, não antecipação forçada de conteúdos formais.
Quando tratamos a Educação Infantil como “pré-alfabetização”, desvalorizamos o que ela tem de mais potente: a formação integral do sujeito humano.
O papel da escola e dos professores
A escola precisa resistir à pressão de “mostrar resultado” a todo custo. E os professores, principalmente na Educação Infantil e anos iniciais, precisam ser formados para entender o que significa aprender na infância.
Formar professores para alfabetizar vai além de ensinar métodos. É necessário construir um olhar sobre o desenvolvimento da linguagem, a função social da leitura e da escrita e o papel do brincar como estruturante do pensamento infantil.
E, mais do que isso, é preciso ensinar o professor a escutar o que e como as crianças pensam. Porque, quando escutamos de verdade, percebemos que elas já estão se alfabetizando no mundo, por meio de hipóteses, perguntas, narrativas, desenhos, jogos e experiências que ampliam a visão de si e do outro.
Conclusão
A alfabetização tem, sim, um tempo certo. E não, esse tempo não é na Educação Infantil. Antecipar não é preparar melhor. Antecipar pode ser, muitas vezes, sufocar.
Como formadores, coordenadores e diretores, precisamos sustentar a coragem pedagógica de defender o tempo da infância. Isso não é retrocesso. É responsabilidade.
📚 Referências consultadas:
- Dehaene, S. (2012). Os neurônios da leitura. Penso.
- Brasil. (2017). Base Nacional Comum Curricular. MEC.
- Vygotsky, L. S. (2000). A formação social da mente. Martins Fontes.
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